“Talvez, em função da minha idade e do meu tempo de praia, ou seja, há 50 anos trabalho com os yanomami, vi várias coisas que me impedem de ter ilusões”, diz o antropólogo francês
Por: Patricia Fachin, em IHU
“Yãnomamè = (1) homem, pessoa, gente. (2) Yanomami de língua yãnomamè. (3) Língua yãnomamè.” A definição de yanomami, segundo o Dicionário Yãnomamè-Português (1987), de Loretta Emiri, escritora, poeta e fotógrafa italiana que viveu e conviveu com o povo yanomami, define também a experiência do antropólogo Bruce Albert, outro estrangeiro que, no encontro com o diferente, estabeleceu um pacto etnográfico de confiança com o xamã Davi Kopenawa Yanomami e sua família. “Aprendi tudo deles, aprendi a crescer como pessoa. Foi o primeiro lugar onde vi gente morrer, assisti a cerimônias funerárias, ajudei a fazer partos, ou seja, aprendi o fundamental da humanidade muito novo. (…) Para mim, tudo isso teve uma importância pessoal muito grande. Aprendi o que é o fundamental da vida: da vida, da morte, do perigo, da coragem, da lealdade, do humor”, relata na entrevista a seguir concedida via Teams ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Quatro meses depois que o país acompanhou pelo noticiário e pela internet a situação dos yanomami que residem em áreas invadidas pelo garimpo ilegal, e, mais recentemente, assistiu aos desdobramentos do marco temporal no Congresso e ainda vai assistir à sua continuidade na seção do Supremo Tribunal Federal – STF nesta quarta-feira, 07-06-2023, Bruce Albert analisa e comenta a situação dos yanomami no Brasil, explicando as razões da tragédia que acomete os povos indígenas, mas também destacando sua riqueza cultural. “Este projeto do marco temporal é uma monstruosidade jurídica, política e ética; é algo inacreditável”, afirma.
Bruce Albert também aborda o tema dos dois livros publicados com Davi Kopenawa, A queda do céu (Companhia das Letras, 2015) e O espírito da floresta (Companhia das Letras, 2023). O pacto que permitiu essas produções, explica, “se construiu sobre a relação de confiança na medida em que eu ia aprender as coisas deles e seria capaz de traduzir informações para o proveito deles. Sempre entendi que esse era o pacto que nos ligava desde o começo; não se tratava de pegar o conhecimento deles, fazer uma tese e nunca mais aparecer lá. Para mim, pareceu que não era esse o acordo. Sempre fiquei muito sensível a isso e decidi continuar com eles, escrever sobre os yanomami. Os livros fazem parte desse movimento”.
A seguir, o antropólogo narra sua própria versão dos últimos 50 anos em contato com os yanomami, desde que chegou nas terras indígenas na década de 1970, com a Missão Catrimâni, até as transformações políticas e culturais que ocorreram no país. “A luta yanomami tem um pouco deste DNA do começo: a dimensão política e solidária da Igreja, a antropologia, e o mundo da arte, que sempre foi importante nessas lutas. A nossa aliança com os yanomami tem esses ingredientes que vêm do encontro entre os três apaixonados pelos yanomami nos anos 1970. Claudia está com 91 anos, Carlo não deve ficar muito atrás disso e eu já estou na faixa dos 70”.
Bruce Albert nasceu no Marrocos, em 1952. É doutor em antropologia pela Université Paris X Nanterre e pesquisador sênior do Institut de Recherche pour le Développement. Começou a trabalhar com os yanomami em 1975. Participou da fundação da ONG Comissão Pró-Yanomami, em 1978, e participou por décadas da mobilização para a homologação da Terra Indígena Yanomami.
Confira a entrevista.
IHU – Na noite de terça-feira, 30-05-2023, a Câmara dos Deputados aprovou o mérito do Projeto de Lei (PL) 490/2007 por 283 votos a 155 e uma abstenção. Isso é um indicativo de que o Congresso quer avançar na pauta contrária à agenda socioambiental o quanto antes?
Bruce Albert – Este projeto do marco temporal é uma monstruosidade jurídica, política e ética; é algo inacreditável. Como escrevi, é uma terrível ironia da história que no começo do governo Lula 3, com todas as suas promessas de destacar a agenda socioambiental, isso esteja acontecendo. Todo mundo lembra da participação de Raoni [Metuktire] na posse presidencial e, cinco meses depois, estamos confrontados com essa atrocidade que é a maior regressão em matéria de direitos indígenas desde a ditadura. É inacreditável que isso possa acontecer nesse governo. É um escândalo.
Realmente, esta é uma entre várias medidas que apontam na direção de que o Congresso retrógrado está tentando fazer um tipo de impeachment da agenda socioambiental do governo Lula 3. Isso é muito claro na saraivada de medidas em relação ao ministério da Marina e ao da Sonia Guajajara, com a lei da Mata Atlântica, a questão do petróleo. A última semana de maio representa uma regressão brutal e tudo isso é muito perigoso porque pode paralisar totalmente o país. Quer dizer, Lula angariou muito apoio internacional porque todos os aliados ocidentais tradicionais do Brasil têm grande esperança na matéria socioambiental com este governo e, de repente, todo mundo se dá conta de que Lula vendeu muito mais do que pode entregar com este Congresso. Parte da bancada do PT, como no Mato Grosso, tem simpatia contra os direitos indígenas. Com cumplicidade ou omissão, todas essas medidas foram aprovadas de modo tranquilo.
É uma regressão inacreditável e repito: isto vai custar muito caro ao país porque os aliados tradicionais do Brasil já se deram conta de que as promessas do Lula eram, aparentemente, jogo de cena porque ele não pode entregá-las. Não é o flerte dele com a China, com [Nicolás] Maduro, com os russos, que vai melhorar a imagem do governo. Em termos puramente econômicos, os dados indicam que as exportações do Brasil são mais importantes, mas, nem de longe, os fundos diretos de investimento [ambiental] vêm dos aliados [do Brics]. Então, não é o flerte com a China e outros países do Brics que vai compensar a perda enorme do apoio dos aliados tradicionais do Brasil.
A agenda socioambiental era uma peça central deste governo, ao contrário de 2008, onde a Marina foi dispensada em prol da pauta nacional desenvolvimentista. Mas não estamos mais em 2008. Hoje, a pauta socioambiental é central no planeta todo, central geopoliticamente para o apoio que o Brasil pode dar ao mundo, mas a situação não vai se resolver entregando os pontos para o centrão e se livrando da Marina e da Sonia Guajajara ou esvaziando os ministérios. O governo se deu conta da situação e está tentando fazer algo, mas o movimento é muito fraco. Há um silêncio ensurdecedor do Lula de ontem para hoje [terça-feira, 25-05-2023, para quarta-feira, 26-05-2023], no encontro que teve com os chefes de Estado latino-americanos. Ele está totalmente encurralado pelo Congresso. A imprensa internacional começa a publicar notícias sobre essa regressão e até agora nenhuma palavra do governo. Vão tentar alternativas pela via jurídica, no Supremo Tribunal Federal – STF, mas me parece que precisaria uma ação mais energética para deter esse desastre.
IHU – O senhor tem uma postura mais dura e contundente de crítica ao governo Lula, comparado a outros posicionamentos que tentam minimizar a situação ou destacar que a pauta do marco temporal é uma pauta do Congresso e não do presidente, ou daqueles posicionamentos que apelam à resolução do tema do STF. Por que o senhor tem enfatizado e endereçado uma crítica específica ao governo e ao presidente? A agenda socioambiental não é uma prioridade do governo?
Bruce Albert – Porque já tivemos exemplo disso e estamos no governo Lula 3. Realmente sabemos que Lula tem um software muito nacional-desenvolvimentista. Ele tornou Dilma ministra e presidente porque ela era uma radical dessa pauta. O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e toda a pauta desenvolvimentista gerou Belo Monte e não esquecemos Belo Monte. Nós, que trabalhamos com os yanomami, não esquecemos a contrarreforma da saúde do PT. Em 2004, existia um sistema de saúde indígena que funcionava relativamente bem. Uma ONG de saúde yanomami atuava nas comunidades e conseguiu erradicar a malária e dar uma assistência médica muito boa aos yanomami durante quatro anos e, de repente, para satisfazer os aliados locais, que era o famigerado Romero Jucá, o PT detonou essa reforma da saúde e fez uma contrarreforma que permitiu, de novo, que o dinheiro público destinado à saúde indígena transitasse nas instituições locais. Aquele foi um primeiro caso, em 2004, quando a saúde yanomami foi desestruturada em benefício da aliança com elementos do Centrão. Aí recomeçou uma corrupção hedionda: tinha cerca de 8 milhões de reais em 2004 para atender a maior parte do território yanomami e nos anos anteriores o recurso era na faixa de 80 milhões. Depois de 20 anos, o sistema de saúde ficou capenga, faltava remédio, faltava pessoal e cada vez havia mais problemas de corrupção, custos astronômicos. Então, já vimos esse filme.
Talvez, em função da minha idade e do meu tempo de praia, ou seja, há 50 anos trabalho com os yanomami, vi várias coisas que me impedem de ter ilusões. É fantástico o Lula ter sido eleito e ter tirado aquele demente e nazista do Bolsonaro [da presidência]. Não tenho dúvida sobre isso, mas justamente porque a esperança é muito alta, a cobrança pode ser também. Só castigamos bem as pessoas que amamos, como diz o ditado popular.
Desconfiança
Essa desconfiança, para mim, vem de longe, vem do primeiro mandato, onde o mecanismo de favorecer a aliança com o Centrão, sob o pretexto da governabilidade, sempre tem o objetivo de fazer passar a pauta desenvolvimentista antes da agenda socioambiental. Em 2004, foi rifada a saúde yanomami, em 2008, foi rifada a Marina, depois veio Belo Monte e, em seguida, Temer acabou sendo vice-presidente e vimos as consequências. A conivência e tentativa de negociar o inegociável com os trogloditas do Centrão sempre acaba mal. Um ditado que se diz em terras francesas é que quando se quer jantar com o diabo, tem que ter uma colher com um cabo muito comprido. É isto. Não se começa a negociar com essa gente esperando que vão cumprir qualquer coisa. A sequência acabou no impeachment da Dilma. Então, estou desconfiado.
Sei que Lula, pessoalmente, provavelmente tem vontade de empurrar essa agenda, mas ele tem um lado de artista negociador que, algumas vezes, o leva um pouco longe demais, com um preço muito alto. Vimos que não houve muito empenho da bancada [em relação à pauta do marco temporal]. Ela foi liberada para votar e o desmembramento dos ministérios foi negociado por [Alexandre] Padilha e companhia, achando que fizeram um acordo excelente. Então há uma conivência de uma parte do PT, pelo menos, que não tem muito interesse nessa coisa de índio e meio ambiente. Eles estão lá para aplicar o velho modelo de Lula I e II, de crescimento, desenvolvimento e redistribuição e o resto vai para o ralo. Lula chegou no terceiro mandato sem ter revisado esse modelo. Não tem nada muito novo no governo. Estão tentando aplicar as velhas receitas, mas o mundo mudou consideravelmente e já se vê a discrepância em relação a essa questão do carro popular [medidas anunciadas pelo governo para estimular as vendas], que recebeu críticas de todos os lados porque é um modelo defasado. A minha dureza vem dessa experiência.
IHU – Em O espírito da floresta, seu mais recente livro publicado com Davi Kopenawa, ele diz uma frase bastante ilustrativa: “É possível que vocês tenham ouvido falar de nós. No entanto, não sabem quem somos realmente.” Nas últimas décadas os povos indígenas ganharam visibilidade no país e diferentes grupos os apoiam, inclusive no ambiente universitário, mas Kopenawa tem razão quando diz que não os conhecemos realmente. A partir de sua experiência trabalhando no Brasil como antropólogo, como o senhor interpreta a frase dele à luz da sociedade, da política brasileira e das pesquisas feitas sobre os indígenas? Nós ainda não sabemos quem eles são? Há um desconhecimento entre nós que vivemos no mesmo país?
Bruce Albert – Ele tem toda razão e você também, dizendo que nós também não os conhecemos apesar dos estudos dos especialistas porque os especialistas falam para os especialistas, em grande medida. Então, os índios são conhecidos em um círculo muito restrito e, fora disso, são conhecidos como vítimas de todos os desmandos, espoliações, maus-tratos, ou seja, fundamentalmente como vítimas. Mas eles não são isso. Eles são uma civilização e cultura de extrema riqueza intelectual e estética que são pouco conhecidas. Realmente, como antropólogo, estou bem consciente disto, desta contradição entre o fato de que conhecemos bastante certa sociedade indígena, por ter convivido com ela por um tempo, e o fato de que falamos para um meio de pessoas especializadas.
Quem me confrontou com essa contradição foi justamente o Davi, quando começamos a falar sobre o projeto do livro A queda do céu (Companhia das Letras, 2015). Eu, de um lado, era um antropólogo que escrevia textos acadêmicos sobre os yanomami e, de outro lado, estava convivendo com eles há muitos anos, engajado nas suas lutas, mas havia um tipo de esquizofrenia, uma dissociação no sentido de que essas eram duas linhas de pensamento estanques e que são realmente a origem do desconhecimento dos povos indígenas. Davi me confrontou com essa contradição, dizendo que era muito bom eu fazer perguntas para os velhos, escrever sobre esse conhecimento, mas isso não ia para além de mim e das pessoas que eu conhecia. Então, ele me fez uma proposta diferente, de me contar tudo que ele sabia sobre o xamanismo dos yanomami e eu iria ajudá-lo a escrever o livro para propagarmos juntos o que são os yanomami em uma grande escala. Ou seja, fazer do livro, como ele diz, uma flecha para tocar o coração dos brancos; mostrar o que eles são. Eles não são coitados que passam fome, que são vítimas dos garimpeiros, mas, sim, mostrar sua história, o que são.
A minha tomada de consciência teve essa origem e teve como resultado o trabalho que realizamos juntos desde então, justamente para sair dessa lógica de falar para um público muito restrito e já convencido ou só apoiar os índios como eternas vítimas, como se eles pudessem ser reduzidos a isso. Tentamos resolver essa contradição dessa maneira, com o trabalho em conjunto. O livro está ajudando Davi a divulgar o pensamento yanomami e as pessoas começam a conhecer melhor o que é uma sociedade indígena, suas lutas, a partir da palavra de um yanomami.
Também fiz esse trabalho com artistas plásticos yanomami, como Joseca [Yanomami], que conheço desde a infância. Ele é um artista que está começando a ter notoriedade e faz uma arte que mostra o patrimônio intelectual dos yanomami. O pai dele era um xamã muito famoso e ele inventou uma forma plástica de representar a visão do xamã como são evocadas nos cantos xamânicos, que descrevem as viagens com os espíritos e os encontros com os diferentes espíritos, o trabalho do xamã nas curas, no controle ecológico e climático do mundo. Ele tenta fazer uma transcrição visual disso, combinando um engajamento político para os direitos yanomami através do conhecimento transmitido para um público maior. Trata-se de tocar o coração, a mente e a sensibilidade dos brancos para entender que eles não são uns coitados que serão varridos do planeta. Eles são parte das maneiras de inventar a humanidade. A diversidade, as maneiras diversas dos povos de inventar formas diferentes de ser humano e de inventar uma sociedade humana no mundo, tem um valor enorme.
IHU – Quais são os temas explorados na arte plástica e como ela contribui para despertar a sensibilidade para compreender o modo de vida e de pensar dos povos indígenas?
Bruce Albert – Através da arte plástica eles transmitem o que, para mim, é uma ideia absolutamente fundamental para entendermos que a representação do mundo e o pensamento do mundo e da sociedade yanomami se faz fora da nossa hierarquização dos seres vivos. O xamanismo, a mitologia yanomami, é exatamente o contrário do nosso antropomorfismo. Desde a Antiguidade grega, classificamos os seres vivos, como os vegetais e árvores, embaixo, animais, no meio, e o ser humano, acima – e obviamente o ser humano branco, homem etc. Essa hierarquização se transmitiu em uma classificação dos povos: os selvagens que habitavam as florestas, os bárbaros e os humanos civilizados. Esses são o topo das duas pirâmides dos seres. Essa é a nossa concepção do mundo.
A concepção de um povo como os yanomami é o contrário: todos os seres são considerados como povo, com a mesma intencionalidade, consciência e subjetividade. São todos povos de seres vivos, quer sejam árvores, quer sejam animais ou humanos, que convivem em um universo, que eles chamam de terra-floresta. Esse universo é como um multiverso de povos e seres vivos que coabitam de forma igualitária nessa terra-floresta-planeta. É uma ideia de que não há hierarquia entre seres vivos. Essa é a raiz desse sistema.
A partir da nossa hierarquização dos seres vivos e dos povos, devastamos o planeta e todos os seres vivos e colonizamos todos os outros povos. Essas duas hierarquias são a raiz da destruição demente que, a partir da Europa, se propagou no mundo inteiro. Hoje, que chegamos a essa crise ecológica absolutamente crítica, parece que está mais do que na hora de considerarmos o pensamento de um povo como o dos yanomami e de outros povos indígenas com mais atenção e seriedade, porque essa filosofia não hierárquica dos seres vivos e dos povos realmente é uma coisa que pode nos dar um ensinamento fundamental se queremos construir um futuro mais ou menos sustentável a partir da situação em que estamos agora.
Terra-floresta-planeta
Essa visão é transmitida tanto nas obras plásticas quanto no livro. A ideia central é mostrar que a terra-floresta-planeta, habitada por todos os seres, deve ser sustentada por um modelo de coabitação igualitária e manter relações que podem ser conflitivas ou de alianças, mas com uma coabitação que precisa buscar uma ordem plana e não hierárquica para não chegar a um ponto de destruição. São quase nove milhões de espécies vivas conhecidas no planeta. Nós somos uma delas e pretendemos dirigir, submeter e destruir todo o resto. A biomassa dos seres humanos na terra é 0,01%, menos que a dos cogumelos. É absolutamente demente como a filosofia ocidental, desde os gregos, construiu um antropocentrismo tão radical e destruidor.
A mensagem que transmitem esses povos é esta: além de não serem vítimas e de serem culturas vivas, eles têm uma diversidade e uma grande riqueza para a humanidade. Eles também são portadores de uma mensagem que me parece fundamental, hoje, para o futuro da humanidade. Em termos práticos, 80% da biodiversidade é floresta que são territórios de povos indígenas no mundo inteiro. Esses são os últimos redutos de biodiversidade. Qualquer mapa da Amazônia vê as ilhas de floresta. A mensagem é uma prova prática da filosofia deles e da nossa. O efeito comparativo não é muito animador para a nossa.
IHU – Pode explicar em que consiste a comunicação xamânica com as imagens e sons da floresta e como ela contribui para termos uma nova compreensão das florestas no contexto de novo regime climático?
Bruce Albert – Esses povos vivem no meio da floresta há milhares de anos e desenvolveram um conhecimento empírico e filosófico extremamente refinado sobre isso. Quando um yanomami entra na floresta, ele está imediatamente observando, com paixão e atenção, tudo, as imagens, o que aconteceu no território, e atento ao ouvido porque a vegetação é muito complexa e a diversidade vegetal é enorme. Eles ficam procurando rastros de animais, de caçadores ou viajantes que passaram no local. São muito atentos a detalhes da fauna, da flora e dos rastros no chão e, ao mesmo tempo, escutam a riqueza da biofonia da floresta: conhecem todos os cantos dos pássaros, os barulhos dos animais e, imediatamente, têm uma hipersensibilidade visual e auditiva para se mexer na floresta. Isso é uma consequência do fato de que, para eles, a floresta não é uma coleção de árvores, mas um universo de povos vivos. Todos os animais e as árvores são respeitados e escutados como povos, pessoas, grupos de seres, que são formados por pessoas humanas e pessoas não humanas, segundo a visão deles.
Linguagem da floresta
Para eles, a linguagem da floresta é uma linguagem permanente com a qual é preciso lidar para viver e ocupar o seu espaço. É fundamental ter essa percepção muito aguçada dos sinais da floresta.
A obra do Sheroanawe [Hakihiiwe], artista plástico venezuelano que fará uma exposição no Museu de Arte de São Paulo – Masp no fim de junho, tem um trabalho que parece um pouco abstrato, geométrico, mas, na realidade, são diversos motivos que ele anota em um caderno quando vai caçar. Ele anota as formas que vê na floresta: o rabo de um animal, a pata de uma rã, uma folha e a obra dele é trabalhada a partir disso. É um tipo de cenografia dos detalhes da floresta. Quer dizer, a observação visual e auditiva que é habitual dos caçadores ele usa para fazer a estenografia da floresta, inspirando-se nas pinturas corporais dos yanomami, que era abstração dos traços identitários dos antepassados animais. Ele reproduz o mesmo processo de estilização e detalhe de animais ou vegetais para produzir uma arte contemporânea e foi até na Bienal de Veneza; é um grande sucesso baseado na observação detalhada e precisa.
Saber xamânico
O saber xamânico é as raízes desse saber igualitário entre os seres vivos; ele vem da mitologia indígena: o primeiro tempo se caracteriza por uma humanidade que era indissociavelmente humana, animal, vegetal. Tudo era uma humanidade, com nome de animais e vegetais, e depois se fez a diferenciação. O xamanismo é baixar as imagens desses seres primordiais. Ou seja, baixar as imagens dos seres quando eram indistinguivelmente humanos, animais e vegetais, é voltar ao tempo da indiferenciação entre humanos, vegetais e animais. Essa é a fonte filosófica do fato que eles consideram que na floresta há um multiverso de pessoas humanas e não humanas, onde cada um constitui sua sociedade e coabita. Esse modelo vem dessa raiz mitológica da primeira humanidade na qual as pessoas tinham nomes de plantas que viriam a ser no futuro, de animais que viriam a ser no futuro, depois de um processo de diferenciação.
O xamanismo permite essa viagem no tempo; é uma dimensão paralela à dimensão das origens. Ele não é um passado; é uma dimensão paralela do mundo atual na qual o xamã pode viajar permanentemente. Essa dimensão está sempre presente, e tomando alucinógeno psicotrópico do pó de yãkoana é possível voltar nesse tempo e fazer baixar as imagens desses seres primordiais antes de diferenciação. Esse é o quadro desse saber e dessa filosofia da qual temos muito que aprender para renovar um pouco o pensamento ecológico. Por exemplo, nós falamos em natureza, mas falar em natureza não é uma solução; faz parte do problema. É justamente por causa da hierarquização dos seres vivos que nós nos colocamos acima, no topo [em relação aos outros seres], e aos poucos, ao longo do desenvolvimento da civilização ocidental, ficamos sozinhos no topo e empurramos todo o resto nesse grupo chamado natureza. A natureza são todos os outros seres vivos que hierarquizamos abaixo de nós e empurramos nessa cena longínqua de seres que podemos manipular e destruir como bem quisermos. A natureza é um conceito que está obsoleto enquanto conceito, mas também enquanto realidade porque destruímos quase tudo. Como diz Davi, a natureza e o meio ambiente são o que destruímos até agora.
IHU – Subjaz nesta visão de mundo mitológica algo espiritual, uma abertura à transcendência, por exemplo, quando os xamãs evocam os espíritos da floresta, cantam para curar doenças? Eles têm uma abertura à alteridade diferente daquela que, por vezes, parece se diluir na cultura ocidental?
Bruce Albert – Você fala em espiritualidade e tudo que descrevi é uma espiritualidade, mas nós temos uma concepção de transcendência que sempre implica a referência a algo fora do sistema, transcendendo-o. A espiritualidade deles não é transcendente; é imanente, é uma espiritualidade dentro do próprio sistema e não invoca uma potência ou algo que está fora do mundo deles. A essência espiritual do sistema deles é justamente pensar no mundo das origens, onde os seres eram uma unidade e depois se separaram, mas deve-se conservar a memória dessa unidade original. A espiritualidade deles é considerar que todos os seres vivos têm a mesma origem e têm que ter uma relação de respeito no mesmo patamar.
Espiritualidade imanente
Na concepção deles, o que chamamos de natureza, não existe; o que existe é essa terra-floresta como um multiverso de pessoas humanas e não humanas. Esta é a noção de espiritualidade deles: que todos os seres que estão coabitando neste multiverso têm igual dignidade, falam e se comunicam e têm que ser respeitados. Tem uma enorme abertura à alteridade porque povos e seres vivos podem ser incluídos neste multiverso e estabelecerem alianças e coabitação. A espiritualidade não é transcendente e não faz apelo a Deus. É uma espiritualidade imanente que conecta todos os seres vivos e povos. É uma espiritualidade do cultivo da multiplicidade e da diversidade. Esta é a espiritualidade dos povos indígenas: respeitar e favorecer a diversidade e reconhecer a diversidade e a coabitação do múltiplo.
Esse é o fundo espiritual e filosófico deles, que não devemos confundir com o nosso, que sempre tem uma dimensão um pouco teológica, que inclui rezar e apelar a uma potência externa. No caso deles, não tem reza nenhuma; é uma experiência intelectual, estética, que é o xamanismo, isto é, a volta às raízes do sistema filosófico do tempo da primeira humanidade, com todas as qualidades das pessoas originais. Ficaram as qualidades que pertencem a todos os seres vivos que, a partir desse núcleo dos antepassados, era humano em suas qualidades e propriedades, mas que tinha diversos nomes de espécies animais ou vegetais. Nessa hierarquia entre animais, vegetais e humanos, havia uma unidade entre essas três dimensões. A diversificação aconteceu posteriormente, mas sempre com uma identidade de origem, e se mantém viva a memória disso através do xamanismo, que frequentemente permite voltar nessa dimensão paralela do mundo das origens. É uma viagem, uma dimensão atual, mas também temporal, metafísica e temporal desse primeiro tempo.
IHU – Como acontece a transmissão do xamanismo entre as gerações mais jovens? Como isso tem sido feito entre os yanomami? Há uma preocupação em transmitir essa compreensão de mundo? Como os mais jovens recebem essa tradição considerando o convívio deles com outras culturas?
Bruce Albert – É uma preocupação do Davi transmitir esse conhecimento, então, ele fez um esforço de valorizar o xamanismo e evitar que os mais jovens comecem a pensar que tudo isso é coisa dos velhos e algo não interessante. Os yanomami foram contatados recentemente, a partir dos anos 1970, em um tempo em que já havia aliados dispostos a trabalhar com eles. Então, eles não foram massacrados e inferiorizados e desvalorizados com uma intensidade tão grande como muitos povos ao fim da história da colonização do Brasil. Eles sempre cultivaram um orgulho da sua cultura e da sua identidade e trabalhamos muito com eles, em escolas bilíngues e percebemos que a língua yanomami poderia traduzir qualquer conceito que vinha de fora. Eles conservaram essa dignidade e esse orgulho do seu próprio pensamento. Isso é notável entre eles e facilitou a continuidade da valorização do pensamento xamânico.
Hoje, todo mundo usa bermuda, pinta o cabelo da cor do cabelo dos jogadores de futebol, usa celular, como é em todo lugar, mas tem um grande respeito até hoje pelo xamanismo e muitos jovens entram nessa carreira e continuam. Na aldeia do Davi tem uns 17 xamãs porque ele fez muita propaganda e esforço para isso ser transmitido. Em todas as regiões yanomami continua o xamanismo porque essa é uma coisa que eles consideram como uma diferença valorizante justamente porque é baseada no conhecimento especial da floresta, comparado com os brancos, que são cegos, surdos e a única reação que têm diante da floresta é ver uma coleção de árvores emaranhadas e querer destruir tudo.
Isso é visível nos anúncios imobiliários de Roraima. Toda vez que se quer vender uma casa, o argumento ou propaganda é: “tudo na cerâmica”. Quer dizer que não se tem uma erva ou um vegetal sobrevivente no quintal. É isso. A nossa visão é esta: tudo na cerâmica, tudo na soja. Mas hoje há muita valorização do pensamento indígena, do pensamento ecológico, o que contribui para pensarmos diferentemente. Eles conseguiram um espaço político desde os anos 1970 e também um espaço cultural.
IHU – Pode nos dar um panorama da diversidade cultural em relação à língua yanomami? Nas terras indígenas do Amazonas e de Roraima, eles falam diferentes idiomas: ninam, sanumá, yanonami e yanomam, da família linguística ianomâmi. Como eles se compreendem e como estão as pesquisas na área da linguística acerca desses idiomas?
Bruce Albert – As últimas pesquisas linguísticas distinguiram seis línguas diferentes, com nomes de dialetos regionais porque a terra yanomami é do tamanho de um país europeu como Portugal ou Hungria. Então existem variações como ocorre nas línguas românicas, como o francês ou português. Ou seja, tem o equivalente de diversidade e se entende, independentemente das distâncias entre as regiões e as línguas, às vezes com mais ou menos dificuldade, mas são línguas de uma mesma família que tem um chão comum. Há uma diversidade e uma variedade muito grande porque eles eram um povo relativamente pequeno na Serra Parima e depois cresceram e aproveitaram as circunstâncias históricas.
Todos os povos que estavam ao redor tiveram que aguentar o choque da colonização portuguesa e desapareceram muitos grupos, mas os yanomami puderam crescer e dispor de um território maior, esvaziado por grupos que lá viviam antes e foram dizimados pela colonização portuguesa no século XIX, quando os yanomami estavam em expansão. Ocuparam esse grande território no fim do século, se diversificaram nas línguas, no conhecimento botânico. É notável que toda a mitologia dos yanomami fala de árvores e plantas que são das terras altas da Serra Parima, as quais não existem nas terras baixas. É uma mitologia que se refere a espécies vegetais que não são as do cotidiano; são espécies de quando o povo antigo dos yanomami vivia só na serra. Então eles tiveram que se adaptar a novos meios, a novos biomas, a língua se diversificou e eles se expandiram no território.
As cabeceiras dos rios Orinoco, Branco e Negro estão na Serra Parima, e é daí que surge o mito de origem dos rios, em que o demiurgo yanomami Omama [criador da floresta para os yanomami] furou a terra e jorraram todas as águas e todos os rios, de um lado e de outro da Serra Parima. É uma visão geográfica totalmente acertada porque as cabeceiras dos rios são nessa região que, aliás, está em perigo por causa do garimpo, atividade que está envenenando com mercúrio todos os grandes rios. Muitas vezes me dá a impressão de que aquilo a nossa sociedade está fazendo aos yanomami é um modelo reduzido do que estamos fazendo para nós mesmos em nível planetário, com a destruição da biodiversidade. Deslanchamos uma guerra bacteriológica e ecológica entre os yanomami, destruindo os seus meios de subsistência, infectando-os com doenças que eles não conheciam. Deslanchamos sobre nós mesmos uma guerra ambiental e bacteriológica e epidemiológica em grande escala.
IHU – Como antropólogo, mas, acima de tudo, como ser humano, como foi viver a experiência do encontro entre culturas tão distintas? Que transformações têm ocorrido entre vocês ao longo desses 50 anos, a partir desse encontro com o outro? O que mudou?
Bruce Albert – Eu cheguei nos yanomami bem novo, com 22 anos, mais ou menos, na década de 1970, meio revoltado, vindo da Europa, pós-maio de 68. Fui aos yanomami porque meu professor de antropologia tinha contato com amigos na academia brasileira, na Universidade de Brasília – UnB, que estava começando um projeto social e antropológico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai para trabalhar na região da Perimetral Norte [Amazonas, Pará, Amapá e Roraima] e tentar conter um pouco os estragos da estrada na região. Esse professor sabia que eu tinha uma sensibilidade política, com gosto pela ação, mas também um interesse intelectual, e me disse que tinha uma atividade perfeita para mim no Brasil, depois que eu concluísse o mestrado, em que eu poderia fazer pesquisa de campo em um lugar onde havia uma situação política complicada, com um povo recém-contatado. Fui bater na porta da embaixada do Brasil em Paris, porque não tinha um tostão para financiar essa pesquisa e à época também não tinha muito financiamento na França estes estudos. A embaixada foi simpática e me deu uma bolsa, mesmo eu falando somente três ou quatro palavras em português. Assim foi possível eu chegar à UnB e ir nos yanomami.
Nasci em Marrocos e, durante minha infância, meus pais trabalharam em vários países, então eu já era desajustado; não sou um francês raiz. Sou um francês misturado, com uma cultura intelectual linguística francesa, mas nunca vivi muito na França quando criança. Sendo um desajustado, para mim era superinteressante ter esses contatos de alteridade mais radical possível. Eu me sentia mais confortável com os yanomami do que na minha região, porque os últimos anos do liceu eu cursei em Versalhes, que era católica integrista de direita, com uma mentalidade terrível. Escapar disso, para mim, era uma benção.
O fundamental da humanidade
Cheguei com a disposição de querer uma aventura intelectual e de vida justamente com uma abertura à alteridade mais radical possível. Fiquei satisfeito porque 50 anos depois continuo com contato permanente com os yanomami, tenho amigos de décadas e conheço a nova geração desde que eles eram pequenininhos e mantenho essa proximidade com eles. Obviamente, hoje, não passo mais meus dias no mato, como fazia quando era jovem, mas aprendi tudo deles, aprendi a crescer como pessoa. Foi o primeiro lugar onde vi gente morrer, assisti a cerimônias funerárias, ajudei a fazer partos, ou seja, aprendi o fundamental da humanidade muito novo. Não passei meu tempo saindo, não tinha videogame na época, ou seja, essa fase da juventude passei lá, aprendendo a fazer outras coisas, quer dizer, esse básico da humanidade.
Para mim, tudo isso teve uma importância pessoal muito grande. Aprendi o que é o fundamental da vida: da vida, da morte, do perigo, da coragem, da lealdade, do humor. Os yanomami têm um humor absolutamente fantástico e que resiste a tudo. Para eles se queixarem de alguma coisa é quase impossível. Eles nunca se queixam de nada. Viajei recentemente com o Davi para os EUA e ele observou como nós estamos sempre nos queixando: se é muito quente, se queixam, se é muito frio, se queixam, com o que comem, se queixam e reclamam o tempo todo. Isso é inimaginável entre eles e é desprezível para os yanomami se queixar de tudo, resmungar. Se eles estão realmente com raiva, eles brigam com alguém de borduna e arco e flecha, mas não ficam latindo como um cachorro, como eles dizem.
Pacto etnográfico
Aprendi muitas coisas assim, de ser um ser humano simplesmente, além de toda a riqueza cultural e da língua deles, que até hoje estudo e descubro coisas novas. É um processo infinito para mim, que me acompanhou a vida inteira. Eles me deram uma formação humana e uma formação intelectual. Quando um antropólogo vai lá, ele não se preocupa muito, pensando que os índios vão adotá-lo porque é simpático e vão lhe dar os conhecimentos para fazer a sua tese. Do ponto de vista dos yanomami, ninguém sabia e se lixava muito para o que poderia ser uma tese ou qualquer coisa do gênero, e me aceitaram porque fiquei lá, insistindo. Me fizeram todo tipo de prova, de brincadeira para me dissuadir a ficar. Mas como eu fiquei lá e queria aprender e era um branco diferente do que eles haviam conhecido – que não queria pegar as mulheres nem os colocar para trabalhar nem tirar a piaçava, ou seja, estava lá para aprender a língua – era algo muito inédito, especialmente porque eu vinha da França. Eu nunca tinha visto uma rede na minha vida e isso, para eles, era o máximo do cômico porque eles cobiçavam muito as redes dos regionais, que eram as redes de algodão brasileiras, e eu nem sequer tinha dormido em uma rede. Não só eu era um branco totalmente desajustado na floresta, mas não sabia nada dos brancos que eram a referência deles. Eu era um alien perfeito para eles e, por fim, decidiram me ensinar seus conhecimentos.
Estou trabalhando agora justamente numa coletânea de mitos que me contou um senhor nos anos 1970, quando decidiu me educar através dos mitos. Como ele viu que eu queria saber sobre o assunto, me ensinou o mito da origem dos brancos para dar o quadro onde eu me situava nesse mundo. Depois, me contou os demais mitos e eu os transcrevi e aprendi a língua aos poucos. Eles me consideravam um branco familiar com as coisas deles, simpático ao mundo deles e acharam que eu poderia ser útil como mensageiro para fora, tanto para eles terem notícias do mundo ameaçador dos brancos quanto para divulgar o pensamento deles. Eu era alguém que poderia ajudá-los a saber o que está acontecendo fora e transmitir a palavra deles para fora, ou seja, ter o papel de intermediário e intérprete. Isso que era mais interessante para eles. O resto, se eu fazia ou não a tese e o que era a antropologia, ninguém sabia do que se tratava nem tinha interesse. Então, o pacto etnográfico se construiu sobre essa relação de confiança na medida em que eu ia aprender as coisas deles e seria capaz de traduzir informações para o proveito deles. Sempre entendi que esse era o pacto que nos ligava desde o começo; não se tratava de pegar o conhecimento deles, fazer uma tese e nunca mais aparecer lá. Para mim, pareceu que não era esse o acordo. Sempre fiquei muito sensível a isso e decidi continuar com eles, escrever sobre os yanomami. Os livros fazem parte desse movimento.
IHU – O Papa Francisco tem falado muito sobre a cultura do encontro entre os povos como uma dimensão importante para curar as feridas do mundo e encontrar saídas em conjunto para os problemas da humanidade. Como essa cultura do encontro poderia ser benéfica no Brasil, a partir do encontro entre indígenas e não indígenas, para superar essa ideia de que somos uns e outros, eles e nós, para realizar um encontro entre diferentes culturas que vivem em um mesmo país? Como o senhor pensa essa questão à luz dos inúmeros problemas socioambientais que existem no Brasil e como esse encontro favoreceria a construção de alternativas conjuntas e benéficas para todos?
Bruce Albert – A filosofia de povos como os yanomami é baseada na abertura ao outro e, cada vez que tem algo novo, eles procuram entender e estabelecer uma relação de aliança. Tudo isso é baseado na cultura que descrevi anteriormente da não hierarquização entre os seres humanos e não humanos. Nosso mundo se criou sobre essa hierarquização dos seres vivos e dos povos e essas são as raízes da destruição. O povo yanomami trabalha o contrário, a partir da abertura ao outro.
O encontro com o outro quer dizer se abrir, entender, e situar ele como uma das peças desse multiverso com a qual se estabelece uma relação de convivência e coabitação. Essa foi a preocupação deles quando vieram os primeiros brancos: primeiro tentaram identificar do que se tratava, se eram fantasmas que estavam voltando na terra, se eram seres maléficos, e fizeram uma espécie de discussão teológica para identificar que tipo de seres eram esses seres novos. Tinham duas teses em confronto: uma afirmava que esses seres tiravam a própria pele quando tiravam as roupas, e eles também observavam os rastros no chão e viam que não tinham marcas de dedos nos rastros dos pés por causa da sola dos sapatos que os homens usavam, então, imaginavam que eram seres maléficos, desconhecidos. Eles discutiam essas questões e depois procuraram encontrar e decifrar de que tipo de outro se tratava, estabelecendo relações de troca de comidas e objetos. Este foi o processo: na frente do outro, investigar que tipo de outro se tratava e depois estabelecer relações para dar um lugar para esse outro nesse universo múltiplo de povos e seres no mundo.
Eles têm essa cultura muito profunda do encontro. Eles têm uma palavra chamada remimuu, que significa fazer contato com gente desconhecida ou ex-inimigo. Remimuu é todo um processo de fazer troca e articular uma nova comunidade, esse novo ser, dentro do multiverso. A cultura do encontro deles é baseada nessa ideia não hierárquica dos povos e dos seres. Esta é a condição se queremos avançar na direção do encontro: desconstruir a hierarquização dos seres e dos povos para inventar novas formas de coabitação no planeta. Esta me parece ser a lição deles. Eu sou um bom exemplo disso no sentido de como eles conseguiram integrar no universo deles uma pessoa que veio da França.
Eles me estudaram muito. Dizemos que os antropólogos estudam os povos indígenas; que nada, você vive sozinho em uma comunidade com 50, 60 pessoas, dia e noite. Imagine bem quem é observado; é o antropólogo. Me observaram, me testaram, e depois decidiram me dar uma educação para que eu pudesse transmitir as regras do jogo. Não fizeram como nós costumamos fazer: julgar o outro como estrangeiro, desprezá-lo ou excluí-lo. Não, eles fizeram isto: me identificaram, testaram, para saber onde me situar, e depois me deram um lugar no tabuleiro deles. Eles fazem isso para tudo, até para adquirir novos conhecimentos. Eles sempre estão procurando alianças com outras formas de ser, outros povos, e têm uma abertura ao outro considerável. Não tem essa coisa de exclusão sistemática de hierarquização. Temos muito que aprender.
Missão católica
Sobre a Igreja, tenho uma nota de rodapé: a minha introdução nos yanomami foi através de uma missão católica, a Missão Catrimâni, com missionários das Missões Consolata, de Turim. Carlo Zacquini, um irmão dessa missão, é uma pessoa fantástica e até hoje somos amigos; é um grande defensor histórico dos yanomami. Ele chegou lá em 1968, numa missão que era mais interessada em conhecer os yanomami, conviver com eles, oferecer assistência. Aprendi muito com o Carlo e com essa missão, que era exemplar, e sempre esteve, em todas as lutas, do lado dos yanomami, com uma enorme abertura, com um encontro e entendimento do outro, bem na vanguarda de tudo isso. Com Carlo e Claudia Andujar, fotógrafa, fundamos, em 1978, a ONG Comissão Pró-Yanomami, que desenvolveu todas as lutas pela terra, programas de saúde, etc., até 2004, quando terminamos com a associação para passar o bastão para uma associação yanomami. Desde o começo, decidimos que este era o objetivo: nós entramos nisso com a ideia de que a ONG era transitória para os yanomami assumi-la, como foi o caso. Fomos três malucos muito diferentes: Carlo, que vinha da Igreja, eu, da antropologia, e a Claudia, que vinha da arte. A luta yanomami tem um pouco deste DNA do começo: a dimensão política e solidária da Igreja, a antropologia, e o mundo da arte, que sempre foi importante nessas lutas. A nossa aliança com os yanomami tem esses ingredientes que vêm do encontro entre os três apaixonados pelos yanomami nos anos 1070. Claudia está com 91 anos, Carlo não deve ficar muito atrás disso e eu já estou na faixa dos 70.
IHU – Os yanomami foram um dos primeiros povos a ter suas terras demarcadas e, recentemente, o país viu a situação em que se encontram, entre outras razões, por causa do avanço do garimpo ilegal em suas terras. O que essa situação significa? O que é preciso fazer além de demarcar as terras? Como analisa essa realidade à luz dos últimos 50 anos, quando teve o primeiro contato com eles?
Bruce Albert – Começamos uma campanha pró-yanomami em 1978 e 14 anos depois conseguimos a demarcação das terras com um decreto presidencial do [Fernando] Collor, no período da Rio-92. Para fazer bonito pelo fato desta conferência ser no Rio de Janeiro, Collor decidiu fazer uma operação para retirar os garimpeiros e demarcar a terra yanomami, apesar da raiva do deputado Bolsonaro, que naquele tempo já conhecíamos. Ele ficava no nosso pé o tempo todo com projetos na Câmara dos Deputados para derrubar os yanomami.
Depois que as terras foram demarcadas, nos demos conta de que eram necessárias outras coisas, como cuidar da saúde dos povos. Implementamos projetos de saúde até eles serem incorporados pela Fundação Nacional de Saúde – Funasa, e o mesmo fizemos com as escolas bilíngues, para eles escreverem em yanomami. Criamos as primeiras escolas bilíngues e inventamos manuais escolares yanomami, sistemas de sinais, alfabetizações e materiais técnicos, até as escolas yanomami serem passadas para a secretaria de educação local.
Defesa do território
Defender um território não é só demarcar as terras. Essa é uma condição absolutamente necessária que dá uma base de luta e reivindicação, mas não é suficiente porque tem que formar gerações de jovens yanomami e outros grupos. As escolas eram baseadas em um tipo de antropologia inversa: fizemos uma etnografia do mundo dos brancos, para os yanomami, traduzimos a língua dos brancos, explicamos como funciona o sistema político dos brancos, as cidades, a administração. Fizemos isso durante anos nas escolas para preparar a geração dos yanomami. O filho do Davi, Dário, que é uma liderança emergente nos yanomami, vem dessas escolas e dessa geração. Era fundamental prepará-los para continuar essa luta pela defesa do território e a defesa da saúde, antes de tudo, porque, embora tenha terra para ser delimitada, se não tiver ninguém vivo, não vai adiantar muito.
Era preciso um conjunto de ações, homologação da terra, educação e saúde, para sustentar a perenidade da demarcação e dos direitos territoriais. Essa foi a ideia.
O filme dos últimos 50 anos, de certo modo, não é muito animador porque a situação está quase pior do que estava no começo. Depois da construção da Perimetral Norte, houve um tempo de calmaria. Depois recomeçou a primeira onda de garimpo, que foi um desastre total. Em seguida, a situação acalmou novamente e, a partir de 2015, recomeçou o garimpo e, desde de 2018, veio o apocalipse do Bolsonaro. Foram três momentos totalmente dramáticos e um pior que o outro.
História dos yanomami
Tendemos a reduzir a história dos outros à duração da nossa própria existência na terra, mas depois de um tempo você se dá conta disso e começa a se acalmar. É muita pretensão e prepotência pensar que durante a nossa vida, por mais que a gente faça, vamos resolver o problema dos yanomami. A história dos yanomami é dos yanomami. O que fizemos durante esse processo foi colocar uma pedra no sapato daqueles que queriam varrer este povo da face da terra, durante a ditadura, nos anos 80 com o garimpo, depois no governo Bolsonaro. Apesar da situação ser trágica, é uma tragédia publicizada no mundo inteiro, em todos os jornais do planeta, e o governo teve que fazer alguma coisa, mandar ajuda humanitária e retirar garimpeiros. A nossa ação nunca é em vão, embora nem sempre seja a ideal. Não conseguimos o paraíso na terra para os yanomami, mas seria uma prepotência cretina querer isso. Porém, tivemos um papel e contribuímos na medida do possível para formar os jovens yanomami para eles tocarem adiante a história deles com um pouco mais de armas metafóricas, para lidar com a história que sempre vai ser difícil porque no meio das terras tem ouro e eles vão continuar nessa luta por muito tempo. Misturada nessa luta negativa, do outro lado, há uma enorme satisfação de sentir a combatividade e a competência de todos os jovens yanomami que são líderes políticos, agentes de saúde, professores, escritores, artistas. Realmente, surgiu uma turma poderosa, cheia de energia, que dá uma grande satisfação e otimismo para o futuro, apesar dos desastres.
Geopolítica militar
Os desastres estão muito ligados à geopolítica militar no Brasil. Se observarmos bem, esses três momentos críticos da situação dos yanomami são devidos exatamente a isto: à ditadura, aos projetos do general [Emílio Garrastazu] Médici por desenvolvimento na Amazônia, como as estradas e colonização nos anos de 1973 a 1976. Esse período foi um horror na área yanomami. Depois, acalmou, veio a redemocratização, os militares negociaram um processo de redemocratização para manter um quintal na Amazônia como seu terreno de jogo exclusivo, que é o Projeto Calha Norte, de 1985. Em seguida, chegaram os garimpos que os militares apoiaram indiretamente a todo vapor e depois veio o governo Bolsonaro, com a sustentação dos militares e a vontade de acabar com a terra dos yanomami. Nesses 50 anos, mantém-se o mesmo modelo geopolítico dos militares que pensam que a Amazônia é vulnerável, pode ser ocupada por potências estrangeiras e, portanto, não se podem tolerar populações como os indígenas, que não falam português, não são os verdadeiros brasileiros. Essa balela arqueológica arrasta os militares até hoje. Eles não renovaram seu pensamento geopolítico desde os anos 1960. Todos os ataques contra os yanomami têm origem nesse modelo geopolítico da fronteira norte da Amazônia dos militares.
Bolsonaro, nos anos 1990, dizia que era um escândalo criar a terra yanomami e tentou impedi-la. O garimpo começou a subir antes de Bolsonaro, em 2015, mas quando ele chegou ao governo, favoreceu o garimpo. Manteve tudo na pior situação possível para eliminar os yanomami e optou por esvaziar as terras. Realmente, era uma política genocida, deixando os yanomami numa situação tal que só poderiam sumir naturalmente. Essa era a ideologia dele.
Esses três momentos históricos têm a assinatura dos militares. Vemos isso até agora nas operações no governo Lula 3, mesmo com um monte de medidas positivas do Ibama, da Polícia Federal, de ajuda humanitária e de saúde: mas qual é o resultado depois de quatro meses? É que boa parte dos garimpeiros ainda está lá, ligados com facções criminosas, superarmados. Tem uma guerrilha lá. Dizem que 80% dos garimpeiros saíram, mas fica um contingente de garimpeiros radicalizados, associados ao crime organizado que impede a entrada de equipes de saúde, de ajuda humanitária em uma boa parte das terras yanomami ainda. E quem pode fazer alguma coisa sobre isso, nesse nível de violência, com guerrilhas instaladas em áreas de fronteiras que os militares tanto prezam e valorizam? Por que não tem uma intervenção do Ministério da Defesa para que a promessa do Lula, de uma desintrusão total das áreas yanomami, seja cumprida? Porque os militares não gostam disso e uma medida dessas é contra o projeto deles dos últimos 50 anos. Eles não são contra os garimpeiros. Então, eles não intervêm na desintrusão e fazem espetáculos como jogar latas de sardinha no mato, levar cestas básicas, fazem remoções humanitárias acrobáticas para serem publicadas na imprensa. Tudo isso é um jogo de cena que esconde o fato central de que eles não estão participando da luta contra a guerrilheira narcogarimpeira que existe no meio da terra yanomami. É uma situação incompreensível.
IHU – Ao falar da Amazônia como território em disputa, Davi Kopenawa disse que “os brancos estão destruindo a Amazônia porque não sabem sonhar”. O Papa Francisco usa a mesma imagem: sonhar juntos se quisermos construir um futuro diferente. Alguns defendem a tecnologia e o conhecimento técnico-científico como via de solução para a resolução dos problemas da região, outros argumentam que a manutenção da floresta em pé e a preservação dos povos são fundamentais. À luz da frase do Davi e das disputas na região, como o senhor tem pensado sobre o desenvolvimento e a preservação socioambiental da Amazônia a partir do diálogo entre o mundo científico e o saber tradicional dos povos, em um contexto de novo regime climático? Essa integração é necessária?
Bruce Albert – A primeira coisa é deixar os povos indígenas viverem nos seus territórios como bem entendem. A Amazônia indígena tem que ficar preservada para os povos indígenas continuarem preservando seu modo de viver como bem entendem. Essa é uma preliminar a tudo. O desenvolvimento é uma coisa que faz parte desse modelo de destruição total; essa iniciativa de buscar petróleo na foz do Amazonas é absurda. Sabemos que os projetos ditos de desenvolvimento são o modelo único da ditadura, que continua vigente, com grandes projetos, barragens, petróleo, agroindústria. O que isso deu como resultado até hoje? É desastroso do ponto de vista social, local. Belo Monte é um exemplo: multiplicou a miséria, os problemas sociais de todo tipo e tamanho; em termos ecológicos, é completamente suicidário. Se continuar assim, a Amazônia vai entrar em um processo de savanização e isso terá consequências em todo lugar. Todas as pesquisas sobre os rios voadores mostram que a Amazônia regula o clima e as precipitações em todo o continente.
Estou morando no Uruguai e aqui não temos água potável. Não tem chuva e estamos bebendo a água salgada do Rio da Prata, que está sendo misturada dentro do sistema de abastecimento de água. Parece que estamos bebendo água do mar por causa de uma seca terrível e nunca vista. Isso vem das perturbações ambientais e, em grande parte, das que ocorrem na Amazônia. Esse modelo de desenvolvimento mostrou, inúmeras vezes, que é desastroso localmente, ecologicamente suicidário, e só dá proveito para uma minoria de gente no país. Isso não é desenvolvimento; é uma farsa sinistra. Não tem que inventar um novo modo de usar os recursos na Amazônia.
O conhecimento dos povos indígenas é importante porque são pessoas que vivem nesse meio há milhares de anos e têm uma ciência da observação dos fenômenos da flora, da fauna, do clima, que realmente é uma coisa que temos que levar em conta porque somos cegos e surdos e começamos a destruir o ambiente sem saber das consequências. Ignoramos isso. Além de respeitar os territórios deles, um diálogo a partir dos conhecimentos deles, para qualquer tipo de intervenção na Amazônia, é imprescindível porque estamos em uma situação extremamente crítica, com secas, inundações. A Amazônia está em uma situação cada vez pior, e os povos indígenas observam que as mutações na Amazônia são inquietantes.
Viver na Amazônia
A meu ver, muitas experiências locais têm um impacto social importante. Existem projetos alternativos que permitem manter a população com um nível de vida bom no lugar onde estão. Do contrário, a tendência é todo mundo fugir para a cidade e a Amazônia ficar vazia. Não existe modelo de desenvolvimento local na Amazônia. Ela está cada vez mais urbanizada e vazia. Algumas ONGs tentaram fazer projetos locais para tentar fixar a população dentro da Amazônia. Mas o desenvolvimento, para muitos, é ir para a cidade, comprar um carro, se encher de bugiganga. É isso que chamamos de desenvolvimento. Um modelo interessante é permitir aos habitantes da Amazônia continuar a viver na Amazônia ao invés de se acumularem em poucas cidades, totalmente dependentes de energia fóssil, de consumismo, fazendo com que dois terços acabem nas favelas, em condições dramáticas.
A única maneira de evitar a urbanização excessiva, o êxodo rural para a cidade, é criar um modelo de desenvolvimento em pequena escala, que fixe as comunidades nos seus lugares, permitindo que vivam em seus locais de origem. Do contrário, vai ocorrer o que aconteceu na Europa: todos irão para a cidade e as regiões de campo virarão regiões de agroindustrial, cheias de tóxicos. Esse desenvolvimento nós já sabemos o que é. Seguindo esse curso, a Amazônia vai virar campo para boi e soja.
O nosso sistema é um trem louco. É difícil pensar alternativas porque a máquina é lançada a uma tal velocidade que se você parar tudo, cria uma catástrofe pior do que qualquer coisa. Se continuar, também. Para mim, a única solução é a pequena escala, comunidades ajudadas para manter um modo de vida que seja satisfatório na região de origem.
IHU – Entre os problemas que persistem no Brasil, destacam-se o da fome, o da pobreza e o das desigualdades. Recentemente, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou um estudo apontando que mais de 60% de crianças indígenas estão abaixo da linha da pobreza no país. Qual seu diagnóstico da situação? Como enfrentar essas questões, considerando que muitos indígenas também moram nas periferias urbanas?
Bruce Albert – O que eu vejo é que temos a impressão de que a má nutrição é em função da disfuncionalidade da sociedade indígena. O primeiro preconceito começa por aí: os pobres coitados que não conseguem nutrir suas crianças. Não conseguimos entender uma coisa simples, isto é, que toda essa má nutrição indígena vem do fato de que destruímos o sistema tradicional de subsistência deles, ocupamos os territórios deles. A consequência é uma sociedade cuja economia de subsistência está estruturada, as terras estão destruídas e, obviamente, quando eles saem de suas regiões, vivem em condições horríveis. Isso é resultado do desenvolvimento. Como dizia [Claude] Lévi-Strauss a propósito disso, no terceiro mundo está nosso lixo jogado na face do universo. Quer dizer, por que tem pessoas que morrem de fome aqui e na África? Antes da colonização europeia havia sistemas tradicionais, reinados, sociedades perfeitamente organizadas que não sofriam de fome. Nossa destruição colonial dos meios de reprodução desses povos é o que produz a sua suposta miséria e má nutrição. Então, é nossa a responsabilidade.
Quando conheci os yanomami, totalmente isolados, havia uma fartura enorme: festa atrás de festa. Tinha tanta banana, caça o tempo todo, muita comida. Nunca comi tão bem quanto junto aos yanomami. Colhiam 300 tipos de frutas diferentes, 32 tipos de mel, animais de caça de todo tipo e tamanho cuja qualidade da carne varia o gosto em função das estações. Ou seja, tem um requinte na comida deles; uma riqueza degustativa, alimentícia e uma fartura enorme.
Agora, eles vivem em situação de má nutrição e o governo tem que enviar cesta básica porque os garimpeiros destruíram a floresta. O barulho das máquinas afasta a caça, os rios viraram um mar de lama e não dá mais para pescar. Todo mundo está doente e não plantam mais roça. Ou seja, provocou-se uma desestruturação total no modo de subsistência tradicional e depois se diz que os coitados são malnutridos, os selvagens não trabalham e é preciso enviar latas de sardinha. Minha primeira reação em relação à má nutrição dos povos indígenas é dizer que isso não existe na origem; é produzido pela destruição que impomos aos seus territórios e modos de vida.
A solução é permitir que eles possam viver como bem entendam nos territórios necessários para cultivar seu modo de subsistência. Essa é a chave de tudo. Encher eles de sardinha, frango e cesta básica cria dependência. Obviamente que numa situação de emergência não tem outra coisa a fazer. Mas Davi fica muito possesso quanto a isso e com toda a razão. Se querem ajudar, ao invés de mandar cesta básica, têm que deixar a terra em paz; enviem machados para que possam plantar na roça e viver normalmente. É assim que se resolve o problema da má nutrição dos indígenas.
Claro que tem uma parte dos indígenas que está urbanizada e vive com problemas diversos, ainda que eu tenha visto, em Rondônia, pessoas que estavam urbanizadas e lutavam para ter uma terra indígena e, quando conseguiam, viviam também nas terras porque uma parte da subsistência vinha da roça e elas comercializavam os produtos nas cidades. São pessoas que vivem nas aldeias e na cidade. O novo espaço dos povos indígenas não é só a aldeia, mas entre a cidade e a aldeia, com trocas, transações, comércio. Grande parte da solução para os povos indígenas que vivem nas cidades é ter terras de origem demarcada e permitir a eles ter essa retaguarda de subsistência. Como queremos resolver o problema de pessoas das quais tiramos as terras? Imagina se roubam seu apartamento, te colocam na rua e depois avaliarem que você tem problemas de má nutrição e é preciso inventar um programa social para te sustentar. Mas tudo começou porque lhe tiraram o apartamento. Se você tiver seu apartamento, seu trabalho e sua vida organizada, não vai ficar má nutrida nem na rua. É um absurdo terem destruído a base econômica e territorial dos indígenas e agora querer encontrar maneiras de resolver esse problema social. Iremos resolver o problema não produzindo-o. Essa é a melhor solução para resolver.
–
Bruce Albert (Foto: Reprodução)